Notícias

Jul 2011

Huse: hospital ou campo de concentração?

Compartilhar:

20190815130836_5d558384534d1.jpg
Por Gilmara Moura Jornal Cinform   Houve um tempo, e não vai muito longe, em que dez entre cada dez sergipanos bem informados - incluindo aí altas figuras da saúde - repetiam na família e nos ciclos sociais que se lhes ocorresse algo grave na área do trauma não lhes levasse para outro lugar que não fosse o Hospital de Urgências de Sergipe - o Huse -, antes Hospital Governador João Alves. Mas esta reputação foi rasgada. E, por mais estranho que possa parecer, rasgada por quem deveria preservá-la e potencializá-la: o Governo do Estado, seu 'pai', seu gestor maior.

Lembra do caso do operador de produção da Petrobras Antônio Jorge Santana, de 48 anos, relatado pelo Cinform na semana passada? Aquele que às 17h30 da sexta-feira, 24, tombou seu carro entre Pirambu e Japaratuba e às 17h30 do sábado, dia 25, foi enterrado em Aracaju? O detalhe é que, ao contrário de seu concunhado Carlos Alberto Ferreira Lucas, que estava no mesmo carro e morreu no local do acidente, Antônio Jorge saiu 'bem'. Socorrido e, conversando, chegou ao Huse às 20h18.

Mas ali Jorge foi premiado com a morte mandada por um Estado negligente, conforme noticiou este semanário. Casado com a enfermeira Suziene Natali Matos Santana, funcionária da saúde pública estadual e municipal, ele não conseguiu espaço na burocracia para ser atendido. E, quando conseguiu, foi mal atendido. Pelo menos é o que alega Avilete Ramalho, irmã da vítima. "Só começaram a nos dar atenção depois que liguei para que alguns amigos intercedessem por nós. E, mesmo assim, o médico plantonista fazia os procedimentos com sarcasmo. Era como se estivessem irritados pela intervenção externa, de superiores", supõe Avilete.

Mas o pior ainda não foi o descaso com o atendimento. O fato de dificultarem a transferência do paciente para o Hospital São Lucas, como a família desejava, é o que mais causa indignação. Esse anseio desesperado dos parentes se dava por um motivo assustador: o equipamento de que mais se necessitava e que poderia ter indicado a salvação da vida de Antônio Jorge, o tomógrafo, estava quebrado. Aliás, 'estavam': ali há dois e ambos estavam fora de uso desde a manhã da sexta, dia 24. Agora um já foi concertado. O outro, justamente o do pronto-socorro, permanece inoperante.

Para a viúva Suziene Natali Matos Santana, agora só resta a dor que, claro, é inenarrável, indizível. Indescritível. Mas é insuportável a dor de enterrar um marido que poderia - que fique claro, poderia - ter vivido não fosse o estúpido desmazelo de um hospital que, outrora, desfrutava do título de referência no quesito trauma. "Ele poderia não ter resistido. Mas o que mais dói é lembrar que eles (a equipe médica de plantão naquela noite) diziam que Antônio estava estável. Mas como sabiam disso, se não fizeram nada?", questiona Suziene Santana.

É tudo isso que faz do Huse um quase abatedouro. Uma quase casa da morte. Um local onde morrer é tão comum que este ato chega a ser, por vezes, ignorado. Algo comum. "Isto aqui parece até um campo de concentração. Parece com Auschwitz", diz um funcionário do hospital que, por motivos óbvios, prefere não se identificar. Auschwitz é o nome de um grupo de campos de concentração localizados no sul da Polônia, símbolos do Holocausto perpetrado pelo nazismo de Adolf Hitler.

  PARECER TÉCNICO José Castilho Almeida de Jesus, assessor de Comunicação da Fundação Hospitalar, informa, de forma quase superficial, que Antônio Jorge Santana saiu do Huse às 0h50 do dia 25 de junho de 2011. "O paciente estava consciente, orientado, saturando 99%, em uso de colar cervical, acompanhado por médico e equipe de enfermagem em ambulância do Samu. Ele foi entregue clinicamente estável e sem alterações do quadro clínico anteriormente descrito", relata.

 

Só um detalhe: segundo a esposa da vítima, o colete cervical era tamanho pequeno, quando ele precisava era de um tamanho médio. Suziene diz que esta constatação foi feita pelo médico do São Lucas. Isso provocava muita dor no pescoço do paciente. Mas o drama dos bastidores, até essa transferência se consumar, quem sabe relatar tintin por tintin é a família. "O médico do plantão disse que ele era o chefe ali e que era ele quem mandava", resume a viúva Suziene Santana.

Ainda segundo ela, faltou boa vontade para regularem o paciente. "Eu liguei para o São Lucas, a equipe do neurocirurgião já estava aguardando meu irmão. Liguei para várias ambulâncias, mas diziam que o protocolo não permitia levá-lo dali sem a regulação. E por que não regulavam? E por que não agilizavam, já que não havia tomógrafo e meu irmão ia morrer?", questiona Avilete Ramalho.

E é neste ponto que está o ápice do inconformismo. "Se meu irmão tivesse morrido, mas tivesse sido feito todos os procedimentos necessários para que isso não ocorresse, estaríamos conformados", desabafa Aviele. Esse desmazelo do Huse reflete na sociedade um sentimento de medo: 'e se eu precisar um dia, também vou morrer?' Eis exatamente a dúvida do encarregado de condomínio José Carlos Nascimento dos Santos, 49 anos.

"Como a gente pode ficar tranquilo com um hospital que vive com um aparelho importante quebrado? Sei que posso chegar lá e morrer na porta", confidencia José Carlos. Antônio Jorge Santana deixou órfão um garotinho de cinco anos. "Ele pergunta toda hora pelo pai. Digo que ele está no céu. É uma estrela. Aí, quando anoitece, meu filho procura a estrela maior, mais gordinha e diz que é o pai", testemunha Suziene, sem segurar as lágrimas.

QUANTOS MORRERÃO? Ok, Antônio Jorge não morreu no Huse. Seu óbito foi constatado já no São Lucas, uma hora depois que chegou lá, às 2 da madrugada. Mas morreu certamente - frise-se - por causa do descuido do Huse. Por causa da sua falta de comprometimento com quem ali chega. E o pior ainda é saber que Jorge, lamentavelmente, não foi o primeiro e não será o último a morrer pela negligência de um governo que deixa seu maior hospital de urgência e emergência à míngua, sem, por exemplo, um dos seus principais equipamentos: o tomógrafo.

Veja este outro caso que também aconteceu na sexta-feira, 24: às 18h40 chegou ao Huse um rapaz de 23 anos, Ramiro Jesus dos Santos, proveniente do município de Jeremoabo, na Bahia. Ele havia sofrido um acidente de moto e o seu registro no hospital é o 477897. Ramiro foi encaminhado em estado grave para a área vermelha. Em coma, o paciente foi entubado e passou por uma cirurgia geral porque tinha, assim como Jorge, trauma no abdome. Este mesmo rapaz ficou até o domingo, dia 26, pela manhã, aguardando para fazer a tomografia do crânio.

Se um paciente sofreu um acidente e perdeu a consciência, mesmo que ele a tenha recobrado, precisa passar pelo exame de tomografia para saber se há ou não hemorragia interna. Foi o deveria ter acontecido com o Antônio Jorge. "Uma situação como esta é inconcebível para um hospital de urgência e emergência. Um paciente politraumatizado precisa da tomografia para saber se há hemorragia interna", explica o colaborador do Huse. Ele diz também que, fazer uma cirurgia desta, abrir o crânio de uma pessoa sem fazer o exame de tomografia, é contar demais com a sorte e com a fé. "É rezar para o paciente sobreviver", lamenta a fonte.

O tomógrafo serve para avaliar o traumatismo cranioencefálico. É um recurso imprescindível para que os neurocirurgiões possam operar com segurança. Às claras. Sem ele, é como aterrissar um avião em uma noite de tempestade sem iluminação na pista de pouso e sem contato com a torre de comando. Ou seja, às cegas. Antigamente, sim, os médicos faziam a cirurgia sem o exame. Mas isso ocorria simplesmente porque o equipamento não existia. E essa ação era uma tentativa heróica de salvar o paciente. Valia à pena arriscar. Mas hoje não se justifica. Fazer nestas condições é dar um chute no escuro. Dirigir um carro com os olhos vendados.

Tomógrafos problemáticos e sucateados

E não é só isso. Mesmo que o Huse conserte seus dois tomógrafos - o que já é pouco para a demanda daquela unidade de saúde - eles já estão obsoletos. "Para se ter uma noção, o tomógrafo da Oncologia é mais novo e faz o exame em um minuto. O da emergência precisa de 10 minutos", detalha o colaborador do maior hospital público de Sergipe. Isso quando está funcionando...

Ainda de acordo com a fonte, o tomógrafo vive travando e queimando a ampola. E quando o bendito pifa, os pacientes são transferidos durante o dia para o Hospital de Cirurgia, e à noite para o Primavera. E quem paga a conta do custo elevado com a ambulância e uma equipe de profissionais que precisa acompanhar cada um dos pacientes? Você. Às vezes, com a moeda que lhe é mais cara: a vida. Sua ou de um familiar.

Diante disso, não seria muito mais vantajoso para o Estado investir em uma equipamento novo? Qualquer um responderia que sim. E parece que, desta vez, a Secretaria de Estado da Saúde se atentou a isso. A SES informou na última sexta que adquiriu um novo tomógrafo que vai substituir um dos aparelhos existentes. O prazo dado para instalação é de até 90 dias. Tomara que até lá não chegue nenhum paciente grave ali. O que seria uma utopia. Um devaneio.

Veja como isso é mesmo impossível: ainda segundo a fonte do Cinform, no domingo, 26, pela manhã, havia um paciente em coma com anisocoria (sinal de gravidade clínica em paciente comatoso) no pronto-socorro da Zona Norte que não havia sido transferido para o Huse, muito menos realizado a tomografia computadorizada. Esse aí, coitado, a essa altura, já deve ter morrido também. Então, imagine se neste período de 90 dias o único tomógrafo que está operando no Huse quebrar novamente quantos irão sucumbir?

Huse coleciona problemas

Há ainda outra questão a ser resolvida no Huse: a escala incompleta dos neurocirurgiões. Apesar de a Justiça já ter determinado por liminar que a direção do hospital mantenha a escala completa, isto não vem ocorrendo. A alegação da gestão da unidade de saúde é que não há médicos suficientes. O que não é verdade.

Hoje há no hospital 15 neuros (quantidade razoável para um hospita de traumas), sendo que dois estão de licença e um em férias. Nessa subtração simples, restam 12. Quantidade, segundo o funcionário que concedeu entrevista ao Cinform, suficiente para cobrir a escala se não houvesse privilégios para um grupo de neurocirurgiões, sócios de uma empresa que atua fora do Huse. "Bastaria que houvesse uma distribuição das equipes de plantão de forma igualitária, o que não acontece", lamenta o colaborador.

Esses 'privilegiados', de acordo com a fonte, são os mesmos que apoiaram Rogério Carvalho em sua campanha para deputado federal. "Alguns trabalham apenas na enfermaria da neuro avaliando os pacientes eletivos que chegam ao hospital e os encaminham para o Hospital de Cirurgia, para que façam o procedimento cirúrgico lá. Assim eles recebam o valor pela empresa da qual são sócios", explicita.

"Eles escolhem os plantões que querem dar, deixam os piores dias para os demais médicos, e quando dão plantão ficam apenas 12 horas no hospital. Enquanto os outros neuros têm que dar plantão de 24 horas", relata. O funcionário diz ainda que, além disso, se articulam para ficarem juntos em um mesmo plantão. "Chegam a ficar três de uma só vez no domingo pela manhã, que praticamente é tranqüilo", diz. Francisco Claro, diretor do Huse, afirma desconhecer essa prática. "Vou verificar", informa.

Outro detalhe: por determinação do Conselho Federal de Medicina - CFM - nenhum médico deve fazer um procedimento cirúrgico sozinho. No entanto, o servidor que informou essas barbaridades ao Cinform diz que, na quinta-feira, dia 23, um médico que não faz parte deste grupo de 'protegidos' ficou 24 horas sozinho em um plantão e teve que fazer três cirurgias. E era para fazer ou deixar os pacientes morrer? Num esquema assim, o médico termina sendo uma vítima.

Ah, ainda segundo a fonte, dois médicos que fazem parte do 'grupo de elite' estão na coordenação do setor e são policiais. "Por isso há um medo em relação ao que pode ocorrer", confessa. "A situação está insustentável", desabafa. A insatisfação por lá é, sem dúvida, generalizada - tanto da parte do usuário quanto da de quem o atende.

MP faz intervenção

Quarta-feira passada, dia 1º, o Ministério Público do Estado - MPE - entrou com ação na Justiça contra o Estado e a Fundação Hospitalar de Saúde - FHS - pedindo o fechamento da escala dos neurocirurgiões do Hospital de Urgência e Emergência de Sergipe.

O MPE pede que em 15 dias seja fechada a escala, com médicos para atendimento nas enfermarias, nomeação de médicos aprovados em concurso público, requisição de médicos efetivos de outros órgãos ou ainda contratação por tempo indeterminado.Pelo entendimento da Promotoria de Saúde, o Huse precisa ter três neurocirurgiões na escala que deve ser fechada no prazo de 15 dias. Francisco Claro diz que vai discutir com a equipe para ver o que se faz.

"Se houver um entendimento entre os médicos, faremos o que o Ministério Público quer", diz. O descumprimento poderá resultar em multa diária de R$ 10 mil. Será que desta vez, pelo menos esse problema será solucionado? É o que espera o povo - sergipanos e vizinhos nordestinos - que depende daquele hospital.

Siga-nos no Instagram